CURRÍCULO E DOCÊNCIA
- Currículo GT12
- 26 de ago. de 2017
- 10 min de leitura
Guilherme Augusto Rezende Lemos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Grupo de Pesquisa: Currículo, Cultura e Diferença
Coordenadora: Elizabeth Macedo
Vice-coordenador: Guilherme Augusto Rezende Lemos PROPEd/UERJ
São muitos, e muito evidentes, os marcos regulatórios que incidem sobre o currículo e a docência no Brasil: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9394/96 (BRASIL, 1996), Parâmetros Curriculares Nacionais (com seus textos correlatos) (MEC, 1998), Diretrizes Curriculares para a Educação Fundamental (BRASIL, 1998), indagações curriculares (MEC, 2010) e outros textos do programa Currículo em Movimento, Diretrizes Curriculares (gerais) para a Educação Básica (BRASIL, 2010), Plano Nacional de Educação (MEC, 2014), “Por uma política curricular para a educação básica” (MEC, 2014), “Pátria educadora” (BRASIL, 2015); onde “As fantasias de controle (colonial) parecem reforçadas ‘nas cenas diárias de subjetivação’” (MACEDO, 2016. cf. BHABHA, 2003, p. 125). Não obstante, apesar de tentativas de uniformização ou hegemonização de representações, tais documentos constituem-se com verdadeiros patchworks onde, por sua própria forma, configuram-se como arenas de sentidos em disputa, e fracassam de per se. Se assim o é, porque continuam sendo construídos? O que mantém esse círculo vicioso, onde tentativa e fracasso se retroalimentam? Essa é nossa proposta no presente texto.
Temos entendido por currículo a produção de representações ou sentidos (MACEDO, 2016, 2017) que têm como marca o imprevisto ou a imprevisibilidade (LEMOS, 2014, 2017), sendo a docência o entrelugar, inclusive virtual, onde tais representações se processam imprevisivelmente (LEMOS, 2014). Tal posicionamento nos insere no contexto do pós-estruturalismo, onde a subjetividade configura-se como hibridação (BHABHA, 2003), apesar dos sujeitos, e não com produto da ação ou autodeterminação de um ou mais sujeitos. Nesse sentido, temos um problema: regulação e escape se autorreferem. Como pensar o inextricável?
Comecemos por uma analogia. Gerd Bornheim (1998) tece um fio de Ariadne na intrincada relação entre ideologia, ciência e poder que, me parece, é uma das questões de fundo do tema que aqui se propõe. Uma primeira escavação mostra os dois modos da relação entre ciência e poder: o plano instituído e o plano instituinte. No plano instituído, como o próprio nome diz, produz a instituição como forma da organização, ganhando certa autonomia e é justo essa autonomia que revela os problemas dessa relação. De um lado, a pressuposição de um poder instituído que se serve da ciência ou que tem nela sua argumentação e sustentação. Por outro lado, aumentando as lentes sobre a produção da ciência evidencia-se sua absoluta sagacidade tanto para intervir como para construir poder, revela-se uma ciência do poder muito atenta ao exercício do poder instituído, lembrando de que esse mecanismo, justo por que instituído, opera com certa autonomia.
Tal autonomia, embora produza estatutos próprios tanto para o poder como para a ciência, a ponto de produzir a ilusão de um em-si, não afasta a necessária relação de um com o outro.
Que a autonomia se verifica é indubitável, a ponto de se dever afirmar que a obrigação de uma ciência está em estabelecer-se como teoria, na forma de sua racionalidade específica; e toda relação que a ciência possa alimentar com o outro que não ela mesma, com aquilo que lhe está contraposto, apenas concorre para assentar ainda mais essa autonomia, para realizar a sua vocação primeira, sua razão de ser, que é ser antes de tudo teoria. O mesmo deve ser dito do poder: ele vive de sua própria força, de seu impulso singular, ele se quer poder, e nesse sentido persegue a instauração de sua autonomia; tudo que uma teoria lhe possa dar – e ocorre que ela chega a lhe fazer ver até mesmo o seu princípio de inteligibilidade – só tem sentido, na perspectiva do poder, na medida em que fizer como que acrescer por dentro o próprio poder e aclarar a direção de sua atividade. (Bornheim, 1998: 108)
Analogamente, no plano da fantasia da dominação ou colonização, tanto o currículo, enquanto suposta teoria instituída, quanto a docência, enquanto suposto poder teórico sobre o trato com a teoria instituída, concorrem para consolidar as formas de regulação que mantêm o poder enquanto poder como regulação, como lhe escapam ao operarem como ciência do poder. Essa relação entre ciência e poder nada tem de subordinado ou secundário, mas trata-se de uma relação de necessidade, lembrando que necessário é aquilo que é e não pode deixar de ser, não se trata de uma contingência, mas um certo ser-em-si do poder e da ciência enquanto instituições autônomas.
Bornheim pensa essa relação necessária em bases ontológicas, pressupondo um ser próprio tanto do poder quanto da ciência que produz diferença, sendo essa diferença que eleva à necessidade de investigação dessa relação entre a ciência e o poder, não se trata de promiscuidade, mas de necessidade e é essa necessidade que mantém cada parte em seu ser próprio e em sua diferença.
Além desta própria proposta da ANPED em reunir pesquisadores produzindo teoria em torno desse tema, articulando-nos pelo viés da constituição da ciência do poder, outro exemplo, bastante interessante é o artigo publicado por João BARROSO em 2005, intitulado O estado, a educação e a regulação das políticas públicas, nele o autor discute “a evolução da intervenção do Estado na educação no quadro das transformações que ocorrem, em diferentes países, na regulação das políticas e da ação públicas”. A partir de um mergulho no polissêmico conceito de regulação, BARROSO expõe teoricamente toda uma racionalidade do poder instituído afirmando que um dos detonadores da adoção da prática de regulação da educação decorre “da descentralização; da autonomia das escolas; da livre escolha da escola pelos pais”. Nesse sentido, a diversificação dos serviços educacionais, a partir das reformas produzidas nos anos 1980, produziu a necessidade de maior controle do campo.
Percebe-se nitidamente a mescla entre o compósito teórico, razão de ser da ciência, e a intencionalidade da teoria como ciência do poder que critica uma racionalidade do poder constituído, revelando-lhe as entranhas do processo regulatório, ao mesmo tempo que municia o mesmo poder constituído de uma outra racionalidade à guisa de escape e defesa de um ideal de escola pública. Revela-se a autonomia do poder constituído em continuar regulando, seu ser em si, enquanto a noção de ideal evidencia a retroalimentação da relação de necessidade entre ciência e poder ao mesmo tempo que marca sua diferença. Ideal é uma démarche teórica e não uma coisa em si.
Para Bornheim (op.cit.) a equação do problema dessa relação só pode se dar de forma radical, isto é, em bases ontológicas. O exemplo que citamos acima, a partir do texto de BARROSO, revela a face ôntica da questão, aquilo que se entifica numa relação de necessidade entre ciência e poder no plano do instituído. Do ponto de vista ontológico faz-se necessário o mergulho no plano instituinte dessa relação, só nesse plano é possível enxergar essa relação como problema, qual seja “a análise do elemento anterior e instaurador do instituído”: o surto originário de toda ideologia, isto é, “a compreensão da verdade compreendida como histórica”, como errância do homem, onde é possível enxergar o homem como ideológico, existindo na ideologia. Não esta ou aquela ideologia travestida de certeza, um mundo ilusório, um não-ser fadado a extinguir-se (Marx) , mas a ideologia enquanto errância: um caminhar ontologicamente na verdade. Nesse sentido, verdade é caminho e caminhar, não coisa ou certeza.
Desse modo, a relação necessária entre ciência e poder é inescapável, uma reciprocidade ontogenética, pois está erigida sobre o fantasma da ideologia, sobre o chão do não-ser. Quanto mais tentamos escapar, mais regulamos, por que nos recusamos a errar, mergulhados que estamos na ilusão da certeza ideológica. Uma tentativa de imersão empírica nesse contexto traz o econômico como uma verdade historicamente construída.
A palavra “economia” deriva da junção dos termos gregos “oikos” (casa) e “nomos” (costume, lei) resultando em “regras ou administração da casa, do lar”. Portanto, não nos referimos aqui a esta ou aquela forma ou doutrina da Economia, enquanto ciência, mas ao Econômico como processo regulatório que subjaz originariamente a toda economia. Queremos com isso dizer que tanto a regulação como as tentativas de escape caminham no econômico, as relações de reciprocidade nesse sentido entre documentos, currículo e docência reproduzem a reciprocidade ontogenética entre ciência e poder, permeadas por uma economia compreendida como historicamente construída e, por isso, reconhecida como verdadeira. Teorias se antepõem acerca da regulação, mas não escapam ao regulatório.
Parece-nos que a associação entre verdade e certeza “garantida” pelo econômico, promove a “fantasia da dominação”, pelo artifício do “planejamento das regras da casa”. A noção de um fundamento (ontológico) econômico, que a tudo rege, subjaz às ideologias que se confrontam no terreno do ôntico, cuja maior visibilidade se dá pela constituição dos documentos oficiais, arenas de sentidos em disputa reproduzindo uma relação de necessidade entre regulação e escape, um círculo vicioso inescapável.
Uma das fixações muito próprias do econômico é o planejamento do futuro, a tentativa de garantir a certeza de uma casa próspera, mas também de definir o “melhor” futuro possível. Talvez aí resida um lapso através do qual possamos penetrar e reorientar nossas energias, não como nova tentativa de escape para a regulação, que já sabemos impossível, mas como um pensar para além do econômico. A partir do que observamos em linhas anteriores, talvez seja possível afirmar que a imprevisibilidade é a única certeza que o futuro nos oferece, acresce-se a isto a noção de currículo como representação ou produção de sentidos e a docência como o entrelugar onde tais coisas se dão. A produção de sentidos tem sua plenitude no indicativo presente, já que atinente às circunstâncias desse entrelugar, a docência.
Docere, conduzir para dentro, pressupõe estabelecer os meios da “condução” e a demarcação do que seja esse “dentro”, tais procedimentos são antagônicos ao futuro, são operações do aqui e agora. Docência não é uma ação unilateral por parte do professor é o ambiente do aprendizado, onde a ação de inúmeros agentes concorrem e são sempre circunstanciais e imprevistas.
Numa tentativa de compreensão “seca”, imprevisto é aquilo que não foi previsto, algo inesperado, mas também algo extraordinário ou inopinado. O imprevisto é aquilo que está oculto, que não é possível ver ou previamente projetar. O imprevisto é da ordem do inseguro, daquilo que não se pode nem segurar, nem assegurar. O imprevisto é a alma do jogo, é a possibilidade de quem corre o risco, de quem se arrisca no jogo, é a condição precípua de quem joga. Por mais que se conheçam as regras de um jogo, por mais que se tenha destreza no jogar, o imprevisto é a única segurança de um jogo; o que se pode garantir àquele que entra no jogo é que o imprevisto se fará presente.
Alfonso López Quintás, em seu livro Estética, nos diz que
A formação do homem levanta sérios problemas não só no aspecto prático, mas também teórico. Formar uma realidade, como a humana, que não é determinada totalmente pela espécie, mas que deve se fazer e se configurar a si mesma em vinculação ao meio ambiente, se apresenta como uma tarefa difícil e arriscada. (p. 14)
Independente dos senões que possamos ter a termos como “humano” e “realidade”, o que me interessa na reflexão de López Quintás é justamente aquilo que torna “arriscada” o que ele chama de formação do homem. Para ele tal formação se dá pelo encontro com o real, ou melhor, pelo encontro entre “âmbitos de realidade, não entre objetos”. A “realidade” aqui está muito distante da máxima hegeliana[1]. O jogo entre “realidades ambitais” pressupõe assumir valores que não são próprios a nenhum dos jogadores, mas que são oferecidos pelos tais âmbitos, e, por conseguinte, mergulhar na dilemática relação entre o autônomo e o heterônomo.
Mergulhar nesse jogo, distante de uma ação racional, é seguir um processo de “êxtase” e não de “vertigem”. López Quintás opõe esses dois conceitos, seu intuito é dar olhos de ver que a experiência estética, embora própria da atividade artística, não se reduz a ela, pode contribuir para a superação das cisões dilemáticas ao levar o espírito a compreender que pode ser plenamente autônomo sendo heterônomo.
A partir de sua perspectiva peculiar, a experiência estética nos abre a um conceito mais amplo e compreensivo da verdade, da racionalidade, do saber, do homem e da realidade. Com isso nos revela de modo nítido que a personalidade humana se desenvolve através da entrega extática a realidades que oferecem campos de possibilidade de jogo, e é destruída quando o homem se deixa fascinar por realidades exaltantes que produzem vertigem. (p.13 – grifos meus).
O êxtase é a condição daquele que está emocionalmente fora de si ou tomado por sensações adversas, intensas e contundentes como: prazer, alegria, medo etc. É também um prazer vivíssimo, gozo íntimo, causado por uma grande admiração, enlevo ou pasmo. A vertigem, independente de seu aspecto patológico, é aquilo que dá a ilusão de movimento. Êxtase e vertigem relacionam-se com o que está fora; o primeiro, aludindo ao estado emocional daquele que se arrisca no jogo e, a segunda, produzindo a ilusão de que se está dentro de algo que se move por si mesmo e que não sou eu.
Por isso o êxtase é a condição precípua da “formação humana”, nele o espírito se abre para compreensão de que se pode ser plenamente autônomo em meio ao heterônomo, é preciso acolher o “outro” como companheiro de jogo. Essa é a condição da liberdade que se traduz aqui como “aceitar a direção da criatividade”. Portanto, ser autônomo aqui significa estar aberto ao jogo com o outro cujo confronto suscita a criatividade. O jogo rompe as bordas dos esquemas “dentro-fora”, “interior-exterior”, “aqui-ali”, “o meu-o teu”. Na dinâmica arriscada do jogo o autônomo e o heterônomo se mesclam de forma indistinta, fazendo deslizar o conceito de liberdade da autodeterminação para o embate da criatividade. Nesse sentido, não se trata mais de uma ação rumo à saciedade do meu desejo, mas à prazerosa brincadeira de responder e produzir impulsos criativos e, por conseguinte, imprevistos. O autônomo e o heterônomo desfazem as fronteiras e se tornam condições do jogo, não se antepõem, tornam-se a condição de risco na qual o jogo se dá. Como não há autodeterminação não é mais possível a previsibilidade, tudo é imprevisto.
Por isso, desse ponto de vista, não é possível planejar o futuro, esse planejamento é da ordem da vertigem, porque pressupõe que há algo fora dos corpos e que se movimenta independentemente. O planejamento do futuro se traduz na luta dos corpos com esse “algo” que não é corpo, trata-se de uma luta desigual e que torna os corpos de carne e osso ainda mais vulneráveis, dependentes de uma “crença” ou ideologia de que suas ações planejadas alteram a trajetória desse “algo” invisível e vertiginoso. O planejamento do futuro visa o fim da luta e, portanto, o fim da vida. Já o confronto dos corpos de carne e osso (mesmo os “corpos” coletivos o são de carne e osso)são da ordem do êxtase e do estético, literalmente se tocam e têm sua carne e seu osso absolutamente visíveis e violentamente em confronto.
REFERÊNCIAS
BARROSO, João. O estado, a educação e a regulação das políticas públicas. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 92, p. 725-751, Especial - Out. 2005. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. Acessado em 04/07/2017.
BORNHEIM, Gerd. Ideologia, Ciência e Poder. In: BORNHEIM, G. O idiota e o espírito objetivo. 2ed. Rio de Janeiro: UAPE, 1998. 105-114 pp.
LEMOS, Guilherme Augusto Rezende. O sujeito descentrado e a educação como estética. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PROPED/UERJ, 2014.
------. A educação escolar e o imprevisto. Hispanista. Rio de Janeiro, In: Hispanista, n. 69 [Internet] http://www.hispanista.com.br/revista/artigo557.htm.
LÓPEZ QUINTÁS, Alfonso. Estética. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.
MACEDO, Elizabeth. As demandas conservadoras do movimento escola sem partido e a base nacional curricular comum. Educação e Sociedade. vol. 38, no. 139, Campinas, abr./jun. 2017.
______. Base Nacional Curricular Comum: a falsa oposição entre conhecimento para fazer algo e conhecimento em si. Educação em Revista, v. 32, n. 2, p. 45-68, jun. 2016.
[1] “Todo real é racional, todo racional é real”.
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