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Regulação e infelidade

RESUMO

O presente texto trata da traição como uma noção político-epistemológica vinculada à atuação docente. Argumenta sobre a transversalidade dessa ação, através de dispositivos conceituais como a negatricidade, a autorização, a impureza e a alteração. Tem suas inspirações pautadas na epistemologia multirreferencial desenvolvida e esgarçada no contexto da Escola de Ciências da Educação da Universidade de Paris 8. A perspectiva de traição desenvolvida neste artigo implica-se no desejo de se pensar em estratégias de escape diante das regulações intensificadas que transbordam nas políticas educacionais brasileiras. Articulando a epistemologia multirreferencial configurada por Jacques Ardoino com a teoria etnometodológica de Harold Garfinkel, o texto desenvolve a perspectiva da infidelidade, compreendendo-a como uma ação etnometódica político-generativa, implicada à atuação docente, com possibilidades significativas para se desjogar e virar o jogo das políticas restritivas e homogeneizantes, que se tornaram lugar comum nas políticas educacionais dos últimos anos no Brasil.

Palavras-chave: regulação; traição; atuação docente

Aproximações ao tema

A partir do mesmo nicho epistemológicos pluralista que emerge no seio da Escola de Ciências da Educação da Universidade de Paris 8 (MACEDO; BORBA; BARBOSA, 2015), interessados na emergência generativa e política da heterogeneidade, René Lourau e Jacques Ardoino vão propor o que consideram dois escândalos para o cenário acadêmico e científico do início dos anos 1970, com referência à relação com o saber. Trata-se dos conceitos de implicação e de traição. Interessa-nos, nesse texto, realçar a concepção político-epistemológica da traição, argumentando em meio a um cenário de políticas educacionais neoconservadoras que transbordam em regulações intensificadas, com evidentes e intencionadas proposições educacionais restritivas e excludentes. Nossos argumentos, assim, ancoram-se em inspirações epistemológicas multirreferenciais e suas versões constituídas e esgarçadas em meio às relações de trabalho com a atuação e a formação docentes, envidadas pelo Grupo de Pesquisa FORMACCE[1].

Colocar “sob rasura” e trair a regulação intensificada

Stanley Hall (2000) nos fala da necessidade de colocarmos “sob rasura” concepções “que não são boas para pensar”. No caso da atuação docente aqui perspectivada, concepções e proposições colocadas “sob rasura” poderão inflexionar as orientações e proposições regulatórias para processos de traição, diante do cenário de regulação que emerge no presente, como desejo intensificado de moldar ações educacionais, através de políticas restritivas de standardização. Para Hall, colocar “sob rasura” significa colocar um “X” sobre uma concepção, estando ela ainda presente.

Conjugamos a concepção de Hall com a ideia construída por Ardoino (1998) de que trair é desjogar o jogo da expectativa do outro. É desmantelar com contra-estratégias essas expectativas e seus excessos. Em certos momentos, esses dispositivos vinculados ao movimento da negatricidade se transformam em táticas de reexistência, ou seja, luta e criação de possibilidades outras, não alinhadas a determinadas políticas de sentido da regulação.

Regulação intensificada e condição docente

Pululam nos nossos dias, as avaliações em larga escala e “sistemas de ensino” que têm no comparativismo e no padrão didático-curricular seus principais dispositivos para proposição de políticas e práticas pedagógicas. Em todos os momentos em que ventilamos esses dispositivos e suas consequências nas nossas relações com docentes em formação, invariavelmente professores da educação básica, seja do sistema público ou do privado, indagam e se inquietam: “O que podemos fazer diante dessa situação que nos sufoca a cada dia, seja pelas ditas “provas”, seja pelas imposições normativas dos sistemas pré-fabricados de ensino? Estamos nos sentido literalmente enquadrados!” Não raro, se referem a onda fascista da “Escola sem Partido”, como a volta da mordaça dos anos de chumbo.

Num contexto maior de contestações, interessante são os argumentos críticos de Stake, (2011):

“Os países comparam seus sistemas educacionais com base em testes padronizados, isso é simplista [...] Os Estados Unidos ficaram em 28º lugar no teste PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), uma comparação constrangedora (Mcgraw, 2007). Muito mais critérios, muito mais fatores, muito mais histórias deveriam ser relatas e exigidas. Todo este constrangimento para os EUA deve estar na medida certa, mas deveríamos saber mais daquilo que um indicador afirma. Seja a estatística válida ou não, qualquer comparação baseada em uma única estatística é um convite para interpretações inválidas”. (STAKE, 2011, p. 38)

Fundamental é imaginar, tomando os argumentos de Stake, que, atravessando esse comparativismo e esse sistemicismo, existem desejos e intenções de regulação vinculados a resultados homogeneizantes e mercantilistas, na medida em que não é difícil identificarmos quem se interessa e ganha com essas práticas. Um poderosíssimo mercado preparou-se para defender, fatiar e ganhar com a concepção e aplicação desses dispositivos de avaliação. Sabemos, de antemão, que toda homogeneização é excludente, e que, em toda exclusão, implicam-se relações iníquas e hierarquizações. Acrescente-se que, invariavelmente, a experiência dessas avaliações em diversos países, tem implicado na regulação e controle da formação e do trabalho docentes, bem como na promessa de uma produção mais efetiva dos sistemas educacionais.

. No bojo dessa perspectiva, está o mito do produtivismo a mediar algumas obediências reguladas, que têm como promessa inspiradora certa superação abstracionista dos nossos problemas educacionais, pautada na eficiência de uma racionalidade efetivada através da aplicação eficiente da ratio, compreendida como lógica una, um cálculo, enfim. Assim, a atuação docente é convertida, para todos os fins práticos, em indicadores quantitativos produzidos para subsidiar políticas públicas restritivas.

Traição: imaginário mítico, processo generativo e político

Na tradição mitológico, vamos encontrar a traição como um ato do qual emerge uma transversalidade constitutiva e autonomista. Diz-se que nessa tradição a traição de Prometeu foi um arkhé que revelou a inflexão autonomista dessa tradição. Criador da humanidade a partir da terra e da água, Prometeu enfrentou as divindades do Olimpo através das suas várias contraestratégias premeditadas. O seu maior feito traidor foi ter furtado e presenteado a humanidade com o fogo do céu, subtraído por Zeus em um dos seus atos de enfurecimento. Sabendo dessa astúcia de Prometeu em conceder ao ser humano o poder de pensar e racionar, Zeus, enciumado e colérico, ordenou a Hefestos, o ferreiro do céu, que o prendesse em correntes durante trinta mil anos, deixando-o exposto para uma águia bicar o seu fígado e, consequentemente, destruí-lo. Como, porém, Prometeu era imortal, seu fígado, a cada dia, regenerava-se, proporcionando-o mais-vida, experienciando o que poderíamos denominar, no contexto dessa obra, de uma certa reexistência ao beijo da morte. Isso duraria, até o herói Hércules o libertou, e, por ordem de Zeus, trocá-lo no martírio por Quíron, o curandeiro ferido, igualmente imortal. Um centauro, metade homem, metade animal, Quíron exerceu sua função sagrada compartilhando a dor dos feridos como forma de compreensão e compaixão, configuradas na experiência do ser como mestre de si próprio. Como um ente paradoxal e incompleto, foi edificado na complexa sabedoria relacional dos centauros.

O mito aqui é uma inspiração como Bergson concebera, ou seja, um movimento de dilatação generativa do ato de refletir.

Inquieta-nos pensar nesses nossos tempos obscuros de retorno a uma regulação excessiva de inspiração fascista. Vivemos, ao mesmo tempo, fluxos de esperança quando imaginamos que “o real mente e trapaça” (ARDOINO, 1998) por isso podemos colocá-lo “sob rasura”. Ademais, haverá sempre um “imaginário radical” em atuação (CASTORIADIS, 1976). Nesses termos, a traição é uma possibilidade fecunda em termos de potência autonomista e criativa de se fazer aquilo que ainda não é, ou de desjogar e virar o jogo.

Colocar o significado de regulação cultivada pelas políticas de Estado dirigidas aos professores em atuação como um zeitgeist “sob rasura”, e propor a traição como uma epistemologia da atuação docente, foi o que nos motivou a entrar na aventura de propor a infidelidade como uma possibilidade de escape generativo, sem qualquer inflexão para uma perspectiva, diríamos, politicamente correta ou de eliminação do outro.

Para Ardoino (1998, p. 50), epistemólogo da traição e da impureza, “[...] toda interpretação é uma traição”. Ou seja, está presente na potência com a qual podemos desjogar o jogo do outro. Uma das emergências do processo de reexistência. Assim, a traição é generativa porque traz consigo a possibilidade de uma virada, de um escape como emergência da diferença em ato, de uma proposição outra, portanto. Ademais, está dentro de outras emergências epistemológicas perspectivadas pela epistemologia multirreferencial proposta por Jacques Ardoino, como a negatricidade, alteração, impureza, autorização e imaginário radical, essa última, apropriada do pensamento magmático de Cornelius Castoriadis. Esses dispositivos conceituais têm a traição como uma transversalidade, ou seja, nas suas singularidades singularizantes esgarçadas, a traição aparece como potência autonomista.

Do âmago da epistemologia multirreferencial ardoinoneana, “não há interpretação sem traição”, porquanto não há referencial único preexistente a qualquer diálogo (ARDOINO, 2012). Para esse epistemólogo das ciências antropossociais e da educação, “é necessário consentir a legitimidade da traição”, por mais que toda traição traga consigo algo de insuportável (ARDOINO, 1998, p. 50), até porque, porta consigo a impureza que contamina, consubstanciando-se nos âmbitos da alter-ação (ação-com-o-outro). Há, neste movimento, um escape em relação às regulações intensificadas e puritanistas e suas sanhas por standardização. Encontra-se, aqui, o ato de negatricidade, percebido como a capacidade que o outro tem de desmantelar processos regulatórios com suas próprias contra-estratégias.

Tomando como referência que esses dispositivos conceituais são generativos, isto é, são também, ao mesmo tempo, singularizantes, instituintes, seu aspecto transversal implica em perceber a experiência traidora se constituindo em diferentes possibilidades relacionais. Conceito criado nos âmbitos da Análise Institucional francesa, na transversalidade o tema da subjetividade ganha lugar no discurso institucionalista. Materializa-se em dispositivos que permitem a circulação menos restritiva da palavra e de corpos, abrindo as relações para múltiplas conexões potencializadoras de transformações. Para a Análise Institucional, enquanto os atravessamentos têm um caráter reprodutivo, a transversalidade é eminentemente instituinte por habitar as transduções, ou seja, tudo que um encontro acontecimental em si, produz. É nesses termos que a traição é transversal aos conceitos acima referidos.

Voltando à perspectiva da negatricidade, sem esse exercício a autonomia não é conquistada, é condição para criação, habita a contestação, a transgressão e a traição, os conflitos de interesses e suas políticas de sentido. Nesse caso, a ação salta as fronteiras do que pretensamente se quer outorgar. Para Ardoino (1999), a negatricidade é condição para a autorização, experiência autonomista e generativa na qual nos tornamos co-autores de nós mesmos. Experiência na qual, invariavelmente, nos constituímos através das micropolíticas das nossas traições.

Esses argumentos podem nos indicar que o processo de autorização requer o outro, sabendo que se autorizar deriva do latim auctor, aquele que acrescenta. Assim, a autorização vai se instituir no exercício da não-subserviência. Vejamos Fernando Pessoa e sua poesia autorizante, através do seu heterônimo, Álvaro de Campos em “Saudação a Walt Whitman (1993, p. 24).

[...] Arre! Vamos lá prá frente!

Se o próprio Deus impede,

Vamos lá prá frente [...]

(Deixa-me tirar a gravata

e o colarinho. Não se pode

ter muita alegria com a

civilização à roda do

pescoço.) [...]

Do âmago dos processos autorizantes, instala-se a condição da alteração. Enquanto a alteridade se refere à singularidade da presença, a alteração tem a ver com o movimento singularizante causado pela relação que essas singularidades empreendem. Implica na emergência de uma alteridade questionante. Um fenômeno, portanto, eminentemente relacional, no qual se realiza a duração como movimento, inspiração e diferenciação.

Instaura-se nesse movimento generativo, um dos efeitos da hermenêutica da traição que -- na impureza e na sua ação contaminadora em relação ao mito, ao fantasma e aos arquétipos do purismo e do puritanismo -- onde habita o desejo de integrar o dejeto e o que é sujo. Para Ardoino (1998, p. 56), a ideia de pureza é o principal obstáculo à possibilidade e à compreensão da alteração, âmago dos encontros e da heterogeneidade irredutível. Vivemos hoje nos nossos cenários educacionais, a égide da obsessão pela pureza, pela ordem e pela separação puro/impuro. Aliás, há que se ressaltar que esse é um dos fetiches preferidos pelos nossos guethos acadêmicos e suas – muitas vezes violentas -- corporações universitárias, logo se constitui fonte fecunda de intolerâncias teóricas e epistemológicas. Inspirados em Kundera, questionamos: o que será de uma epistemologia que esquece a merda?

A noção de pureza, preeminente na nossa cultura filosófica, científica, política e moral, inscreve-se numa dupla herança de uma racionalidade ocidental apolínea e da filosofia das luzes. Antes de tudo, é puro o que se afirma como sem misturas, as quais poderiam se revelar deformando, alterando. Assimila, muito facilmente, o absoluto, o abstrato e a exclusão. Vale dizer, portanto, que purismo e simplificação andam juntas. Assim, a ideia de corps pur rejeita os processos implicacionais, suas itinerâncias e errâncias, porque inarredavelmente, heterogêneos e impuros nas suas maneiras de subjetivação do mundo. Temos a afirmar, por conseguinte, que a alteração depende muito mais de um contexto heterogêneo e impuro do que da situação inversa. Com essa política de sentido Ardoino (1998, p. 78) vai criticar de forma virulenta a busca mítica de uma pureza essencial, transcendente, ligada à “nostalgia das origens, onde encontraríamos o inferno da purificação”.

Nas políticas de regulação intensificada a traição é a sujeira e, como tal, deve ser excluída por normatizações restritivas em busca do mito identitário, ou seja, puro. Estamos no meio dessa busca, o que consideramos, com Ardoino, o âmago de la pureté dangereuse.

Atuação docente e a traição em tempos de regulações intensificadas

Quando nos referimos à atuação docente, não descolamos da nossa compreensão a ideia e o interesse fulcrais de trabalhar-com professores como pessoas que portam, e atualizam, para todos os fins práticos, etnométodos, com os quais trabalham e produzem a vida, incluindo aí, de forma ampliada, sua profissionalidade. Compreender que professores que se defrontam com as política de regulação não são “idiotas culturais e poéticos” (GARFINKEL, 1976), é compreender que na sua atuação docente emergem descritibilidades, inteligibilidades, analisibilidades e sistematicidades, nas quais habitam a negatricidade, a autorização, a impureza, e os processos implicacionais e, com isso, a possibilidade de alterar, implicada à potência transversal da traição. De uma perspectiva etnometodológica, a traição pode ser considerada um etnométodo, uma etnoaprendizagem, como experiência aprendente (MACEDO DE SÁ, 2015), com os quais o professor e seus atos de currículo (MACEDO, 2016), pode desjogar e virar o jogo regulatório, desmantelando com suas contraestratégias as estratégias da regulação. Tomando o cenário político que vivemos e suas reverberações nas políticas educacionais, marcadas pelas regulações intensificadas, a traição se configura numa possibilidade etnometódica generativamente, fecunda.

Cronistas da sua própria atuação, professores podem se constituir em observadores dos seus próprios cenários, de si próprios e dos seus próprios etnométodos e, a partir daí, podem se autorizar como atores político-epistemológicos implicados. De dentro das suas atuações, podem também instituir dobras singulares e singularizantes, com possibilidades de desjogar e virar o jogo jogado pelas regulações intensificadas e seus transbordamentos. Podem, por conseguinte, a partir de uma perspectiva instituinte, protagonizar alter-ações nas regras do jogo, sem “pedir licença”. Até porque, autoridades culturais que se querem únicas e integradoras serão sempre interpeladas, diante da inarredável presença generativa da traição, um dos instituintes fulcrais da diferença. Neste sentido, podem se indagar: como nossas contraestragégias podem desmantelar os chavões e as restrições contidos nos jogos das regulações intensificadas? Esse é um talento docente que o FORMACCE cultiva, mobiliza e deseja presenciar.

REFERÊNCIAS

ARDOINO, Jacques. Pensar a multirreferencialidade. In: Macedo, R. S.; Barbosa, J. G.; Borba, S. (Orgs.) Jacques Ardoino & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, Coleção Pensadores & Educação, 2012, p. 87-99.

ARDOINO, Jacques. Les avatars de l’éducation. Paris: PUF, 1999.

ARDOINO, Jacques; PERETTI, André. Penser l’hétérogène. Paris: Desclée de Brouwer, 1998.

CAMPOS, Álvaro de. Fernando Pessoa. Saudação a Walt Whitman. Livro de Versos. Lisboa: Estampa, 1993.

CASTORIADIS, Cornelius. L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil, 1976.

GUBA, Egon. The paradigm dialog. Editor Egon G. Guba. NY, 1990.

GARFINKEL, H. Studies in ethnomethodologie. New Jersey: Printice Hall, 1976.

HALL, S. Quem precisa da identidade? In: SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais (Org.). Petrópolis: Vozes, 2000, p. 102-120.

KILANI, Mondher. L’invention de l’autre. Lausanne: Editions Payot, 1992.

MACEDO, Roberto S. A teoria etnoconstitutiva de currículo: uma teoria-ação curricular formacional. Curitiba: CRV, 2016.

MACEDO, Roberto S.; BARBOSA, Joaquim G.; BORBA, Sérgio. Pedagogia Universitária: a Escola de Ciências da Educação da Universidade de Paris 8. Salvador: EDUNEB, 2015.

MACEDO, Roberto S.; MACEDO DE SÁ, Sílvia M. Etnocurrículo, etnoaprendizagens. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

STAKE, Robert. Pesquisa qualitativa: estudando como as coisas funcionam. Porto Alegre: Penso, 2011.

[1] Grupo de Pesquisa em Currículo e Formação, PPGE FACED-UFBA.

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